terça-feira, 23 de junho de 2009

Garapa e o direito à subjetividade

Estive pensando sobre o documentário Garapa, de José Padilha. Vi uma crítica a respeito do filme, que questionava se o modo como Padilha construiu a película é ético. Tenho pensado, por fim, sobre o que é um documentário: um documento, um registro jornalístico, como sugere o nome, ou uma obra cinematográfica; arte.
O que me chamou a atenção nessa crítica, que já nem lembro onde li, é que o autor sequer comentava os aspectos fílmicos, por assim dizer, de Garapa. Para ele, passaram despercebidos, por exemplo, o formato estético que Padilha evidenciou ao optar por filmar em preto-e-branco.
O tal do crítico parecia, pelo seu texto, tocado, talvez chocado, com o que viu na tela do cinema. De fato, não é algo simples de se assistir: a intimidade da fome e da miséria. Intrigou-me, e acredito que o tenha intrigado também, exatamente o fato de estarmos vendo isso em um filme. Padilha entrou nas casas das três famílias, autorizado por elas, obviamente, e filmou as mazelas e a privacidade deles. Se, pela tela, confesso ter sido uma experiência pessoal dificílima, não posso imaginar como foi ao vivo, com cores, e todo o resto.
No entanto, não sei se considero antiético o trabalho de Padilha, de filmar as cores verdadeiras de três famílias miseráveis. A proposta do diretor é honrosa, sem dúvidas: uma tentativa de evidenciar o quão dramática é a fome no Brasil, uma denúncia.
Nesse ponto, o documentário é muito jornalístico, no sentido mais utópico, até. Mas, será que em um formato mais tradicional, um jornal ou na TV, essa “matéria” seria considerada um trabalho honesto, belo e extremamente pessoal? Essas características podem ser facilmente atribuídas ao filme, sua qualidade e beleza são incontestáveis. Em outra mídia, talvez, Garapa seria tachado de apelativo, e, nesse caso, a acusação ética é muito mais pesada.
Na posição de diretor, Padilha tem mais liberdade, e parece saber disso. O formato, a estética, a montagem do documento e o ponto de vista (da câmera) são cuidadosamente escolhidos por ele, o autor. Na pessoa de autor e artista, ele não precisaria se preocupar com a ética? No entanto, a crítica de que falei aqui não foi a única a acusá-lo de antiético, desconsiderando as outras qualidades de seu trabalho.
Há no cinema um espaço para a personalidade e subjetividade de um ponto de vista. É o que dizem. Dizem também que o jornalismo é objetivo. Garapa não se estabelece em nenhum dos dois cenários separadamente. Compromete-se com a verdade, mas não renuncia à liberdade de fazer essa denúncia pelos olhos do diretor.
Sob uma ética kantiana, Padilha não violou a liberdade de escolha de seus atores-personagens, nem a sua. Fez de seu trabalho um excelente trabalho, mas teria ele feito das três famílias um meio para conseguir o que queria? Sendo a participação delas livre, acredito que não. Será?
No Jornalismo não deve haver subjetividade, contudo a qualidade jornalística de Garapa é muito superior à produções jornalísticas sobre o mesmo tema. A própria reflexão que tento realizar através desse texto é extremamente subjetiva. O olhar do diretor, e do jornalista, é o olhar pessoal dele, como ser humano. Nenhuma forma de enxergar a realidade é igual à outra. Isso é um grande impasse para o jornalista, que deveria, por excelência, ser objetivo e imparcial. Mas antes disso, o jornalista é um ser humano. Se me pedissem para definir o ser humano, a palavra “subjetivo” figuraria nessa definição, certamente. E o artista parece compreender melhor esse aspecto inerente ao homem do que a mídia, embora muitas vezes seja veiculado por ela.
Padilha deu-se o direito à subjetividade, e a partir dela, fez funcionar seus princípios éticos e estéticos conjuntamente: seu filme é duro, triste, e belo. Há muito da condição humana em um filme assim. Se, para Kant, só é possível pensar a ética de modo universal, a partir do que há de comum em todos os seres humanos, a subjetividade deve ser debatida e defendida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário